27.10.06

dos gostares

... é um gostar mais forte do que tudo que eu já senti antes, um gostar que parece perene. um gostar que às vezes é sereno, que se satisfaz com a lembrança do teu sorriso meigo, o aconchego do teu abraço, a segurança dos teus olhos, o carinho do teu beijo amigo, o doce do teu perfume. mas um gostar que é às vezes agitado, precisa do som do teu riso, do toque dos teus braços, do brilho intenso dos teus olhos, do gosto molhado da tua boca, do cheiro vivo e presente da tua pele.
é um gostar que às vezes se acanha, se encolhe nos meus olhos baixos, no meu morder de lábios, no meu torcer de mãos, no fungar do meu nariz.
às vezes esse gostar se inquieta e então meus olhos dançam em ti e ao teu redor, meus lábios se abrem e se fecham na dúvida, minhas mãos vão e voltam na ânsia e medo de te tocar, meu nariz pede e recusa o teu cheiro.
é um gostar estranho, mas às vezes é tão normal; às vezes é uma incógnita - e às vezes, a única certeza que eu tenho..
às vezes, um gostar esperançoso, que de se sentir perene e querer tanto ser feliz, acredita que tantas palavras em linhas tão tortas hão de um dia escrever certo.
por ilusão ou premonição, um gostar que às vezes se sente e se sabe compreendido - sem, ainda ou nunca, sê-lo.
é algo inexplicável esse gostar, que sem deixar de gostar, ainda assim alegra-se com a felicidade nos braços de outrem e angustia-se com a angústia de não os ter. é um gostar que, mais do que nunca, faz dilatar e contrair o peito, ao mesmo tempo, quando te vê e te abraça.. é um gostar que não mede esforços por ti e se esconde atrás de cortinas semi-transparentes quando se sente e se sabe por demais exposto.
é um gostar que faz poesia em prosa e proseia em versos, que não rima os sons e acaba por fazer música de sorrisos, gestos, cheiros, toques, sonhos, desejos, lembranças e mesmo desilusões.
é um gostar que gosta - e, por hora, nisso se basta, se alimenta, se reproduz - e, espera, há de disso um dia aliterar-se e morrer.
Sep.30th.2006

19.10.06

Cheiro de Naftalina

Atrás da fumaça do milésimo cigarro do dia, paro para mais uma tragada e por acaso me lembro de como odiava cigarro quando era criança. Era quase uma alergia, um tal de tosse-tosse de envergonhar qualquer mãe, por mais anti-tabagista que fosse.
Deixei o pensamento voar, correr livre pelas ruas asfaltadas onde jogávamos futebol entre um carro, outro e um vizinho mal-humorado que sempre ameaçava não devolver a bola da próxima vez. (Aliás, preciso entregar a do Ângelo, que já está no quintal lá de trás há mais de uma semana).
Cansado de correr, meu pensamento foi se deitar na rede da garagem e se espreguiçou preguiçosamente até as férias de verão; jogou bola na praia e, já mais descansado, correu atrás do guarda-sol até chegar na piscina do prédio de um dos muitos melhores amigos que tínhamos na infância. Deu um salto mortal e caiu em cheio no sofá da sala, com um pacote de bolacha recheada na mão e uma primeira gargalhada com um desenho animado daqueles tempos.
Pegou no sono e acordou numa rápida adolescência colegial, com a voz de um professor que recitava: "ah!, que saudades que tenho da minha infância querida, da aurora minha vida que os anos não trazem mais".
Dormiu pensando no cheiro do cabelo daquela garota linda da carteira da frente e acordou com o celular. Achou que era um amigo da faculdade chamando para a cervejinha-santa-de-todo-dia. Mas não era.
- Como é, Hedgard, o deadline já venceu, aquela crônica saiu ou não sai?
Apago o cigarro e penso que talvez eu devesse parar de fumar.
Aug.8th.2006

Do temp..!

Esses dias vim a reencontrar um amigo que não via há muitos anos. Andávamos em direções opostas, mas não o tinha visto, e quando olhei para o lado para atravessar a rua tomei um susto diante do sorriso dele, agradável como sempre fora. Amigo de infância, sabe, daqueles que brinca de boneca com você, acha aquela peça de Lego que faltava - ou esconde aquela outra do quebra-cabeças que te ocupou a tarde toda pra montar.
É engraçado ficar lembrando essas coisas de criança. Ele me falou dos últimos anos, falou durante quase todo o tempo em que andamos até o estacionamento. Me contou das pessoas que encontrara, dos lugares para onde fora - praticamente o mundo todo -, das coisas bonitas que vira, das coisas erradas que não fizera, falou do colégio, dos pais e dos avós, dos livros e dos discos, das casas e dos carros - e falou até de futebol, natação e ballet.
Já na porta do carro, me deu outro sorriso de criança e perguntou o "e você?" mais interessado que eu ouvira nos últimos 15 anos.
- Trabalhando, trabalhando, lendo um ou outro livro por aí - falei, sem ânimo e já desligando o alarme - sabe como é, parece que os dias estão cada vez mais curtos - destrancando a porta -, a gente parece que vive uma semana em uma vida.
Ele segurou a porta do carro e ficou esperando que eu falasse mais. Mas quando a gente mata a criança que vive dentro dos nossos olhos e brinca com os nossos sorrisos, não há muito mais a contar além do quanto se tem trabalhado, de como os preços subiram e de como este inverno está mais quente que o último - apesar de que nem tivemos tempo para notar ou recordar o frio ou o calor do último inverno.
Parecia que ele ia me perguntar por que eu estava triste, parecia que ia me dizer que tudo ia ficar bem. Parecia que ele ia tirar um chocolate do bolso, quebrá-lo ao meio e me dar a maior metade.
Mas aí ele desapareceu.
Parecia que me dissera tudo sobre o que o eu não sabia. Parecia que tivera repetido o que me dizia na infância: "as coisas importantes na vida são invisíveis aos olhos".
E meu amigo imaginário desapareceu. Deixou comigo a criança interior que eu há tempos deixara em coma numa UTI adulta demais para salvá-la.
E a lua naquela noite estava mais bonita do que eu me lembrava de ela ter estado nos últimos 15 anos...
Aug.8th.2006

Indústria Moveleira

Era uma vez uma mesa. A mesa se apaixonou pela cadeira da sala de jantar. Na sala de jantar havia seis cadeiras, muito parecidas entre si. Mas a mesa se apaixonou por aquela cadeira.
O problema com as cadeiras é que elas são feitas pra sentar. E as mesas, apesar de que às vezes também servem a esse propósito, são feitas para apoiar coisas sobre elas. É uma incompatibilidade, como em tudo no mundo há incompatibilidades. Mas o grande problema mesmo é que mesas e cadeiras, mutuamente, têm medo de se envolver, porque nunca se sabe qual vai ser a nova tendência da decoração de interiores que pode vir a separá-las. Por medo, medo puro e simples de serem felizes até um final não eterno, cadeiras e mesas evitam se envolver. (O mesmo comportamento também é, às vezes, observados entre os humanos, mas esses ao menos já ouviram Vinícius e sua eternidade até onde durar.)
Voltando à mesa que se apaixonou pela cadeira da sala de jantar, um dia aconteceu que tiveram a oportunidade de conviver mais tempo. Numa situação ligeiramente mórbida, após o falecimento da cadeira de rodinhas - que há muito sofria com a perda de suas rodinhas e o rangimento de suas engrenagens -, a cadeira da sala de jantar foi deslocada para a mesa e as duas acabaram se aproximando.
Num triste novembro, o 13° e a tendência dos ambientes rústicos levou à reposição das cadeiras metálicas da sala de jantar por cadeiras de carvalho, grossas e pesadas, e à adição à família fornituresca de uma nova cadeira de rodinhas, que mal sabia andar e cujo couro vermelho dava inveja às cortinas dos bordéis.
A nova cadeira e a mesa não se deram bem. A cadeira era altiva e espaçosa, uma presunção que não casava com o novo visual rústico do ambiente. A mesa se deprimiu. Sem o amor da sua vida e trabalhando com alguém de quem não gostava, deprimiu-se e tentou suicídio, jogando-se contra uma bola de futebol antiga que quicava acidentalmente por ali. Não conseguindo o intento, a mesa ficou ainda - e cada vez mais deprimida.
E eis porque nunca mais consegui sentar e escrever uma linha que prestasse.
Jul.25th.2006

Semanas Assim

Existem semanas em que a imprensa se sente sufocada e à beira de um ataque de nervos. O congresso está de recesso, os presidenciáveis estão se preparando para mais uma semana de campanha, a polícia não tem nada de interessante, o dólar não sobre e nem desce, as guerras do oriente médio não detonam bomba nenhuma e os grandes campeonatos nacionais já foram ou ainda estão por vir. Em semanas assim, os cronistas têm uma certa liberdade temática.
E aquela era uma "semana assim". Por coincidência, eu e um colega do Estadão escrevemos sobre o mesmo tema. Duas semanas antes, aliás, abordáramos o mesmo enfoque em textos sobre a Copa de 2014 no Brasil; por sorte, nos encontramos num café pouco antes do fechamento e achamos por bem tentarmos pontos diferente. Dessa vez, no entanto, o azar entrou em campo e os ombudsmans também. "Amigos, amigos; negócios à parte", escreveu o do meu jornal; "compartilhar a máquina de café, ainda vai; mas as pautas, pelo menos, podiam ser diferentes", comentou o do Estadão.
A verdade é que, em "semanas assim", até os cronistas têm falta de idéias.
Mas o leitor se pergunta sobre o que escrevemos. Pode parecer mentira, mas escrevemos justamente sobre coincidências. Ele, sobre a incrível coincidência de uma testemunha de acusação de um caso da época ter se suicidado - morte por asfixia, segundo o obituário - na mesma semana em que o acusado viajava de férias a Paris. Eu comentava sobre outra incrível coincidência, a da aprovação da lei que obrigava as lojas a terem extintores de incêndio quadrados - fabricados por somente uma empresa no país, de propriedade de 4 deputados federais e um senador.
Agora, é claro, o leitor se pergunta de onde vem esse falatório todo; todas essas notícias velhas na página deste jornal. É que outra coincidência me fez retornar ao tema.
Um amigo, aprovado para o doutorado, precisava de duas teses para concluir uma fase da pesquisa. Apenas duas, de uma biblioteca setorial com 399 volumes. Nas estantes, na mais perfeita ordem que uma biblioteca poderia estar, faltavam apenas dois volumes, emprestados há mais de um mês: o número 082 e o 091. Pode, de novo, parecer mentira, mas eram exatamente os volumes procurados.
Mas esta crônica não pretende apresentar nenhuma tese específica sobre o assunto. É apenas algo que intriga, todas essas coincidências. Eu e meu amigo do Estadão usamos de ironia para comentar as coincidências da época, mas o caso desta vez foi diferente. E, de fato, não sei o que pensar. Pense você, leitor, enquanto eu me preocupo com a crônica de amanhã - por que, está claro, esta é mais uma "semana assim".
Jul.14th.2006

Preparou, chutou, pra fora!

Quarenta e três minutos do segundo tempo das oitavas de final. Eliminatórias. Um a zero França. Os torcedores só pedem um gol brasileiro. O Brasil que tem na conta quatro finalizações, até esse momento. O torcedor não pede nem gol na prorrogação, mas quer a prorrogação. O torcedor quer mesmo os pênaltis. Se for pra pênalti o Brasil com certeza há de vencer, como diz a lenda - a mesma lenda que, mesmo com o péssimo futebol da seleção nos jogos anteriores, ainda fez da equipe uma das favoritas. E o torcedor quer os pênaltis. Quarenta e três minutos do segundo tempo e é falta dentro da área. Falta dentro da área é pênalti! Preparou Ronaldinho Gaúcho, chutou, pra fora!. Tudo que o torcedor queria era um pênalti e o pênalti foi pra fora.
Pois que antes do início da Copa, quando a mídia já havia esquecido de todo o resto do mundo e só se preocupava com o mundial, estávamos no Bar dos Treze eu e dois amigos, um dono de confecção infantil e um vendedor de loja de departamentos. Meu amigo vendedor, entre um gole e o outro, tentava convencer o empresário de que investir em roupas verde e amarelo e com estampas do Brasil podia não ser tão lucrativo quanto parecia. No campo adversário, o empreendedor falava em sair da defensiva, preparar uma tática de ataque, falava do esquema em triângulo - bom, bonito e barato - e, a certa altura do campeonato, não se sabia mais se falavam de futebol ou negócios.
O negócio é que, depois de muito bate-boca, fui convocado a sair do banco de reservas e entrar na conversa. Tentei driblar a idéia mas não consegui finalizar a jogada. Então entrei de chuteira.
- Não acredito nem mesmo que o Brasil vai se classificar pras oitavas de final.
Tomei cartão amarelo. Dos dois. Quisera eu ter juntado ambos, somado um vermelho e sido expulso da conversa. Não gosto de futebol e não entendo muito de negócios.
Meu amigo empresário, no entanto, não parecia cansado e, depois de dois minutos para acréscimo de mais cerveja ao seu copo, sinalizou um "mais uma!" pro garçom e entrou em campo para o segundo tempo da conversa. Explicou que a empresa ia mal, que a concorrência estava jogando melhor e que ele estava pra ser eliminado do mundo dos negócios. Mas seus cálculos davam conta de que, se o Brasil chegasse até as finais, as vendas deveriam subir cerca de 30% e, com o saldo extra, meu amigo empresário poderia quitar algumas dívidas e se recuperar no campeonato.
Isso tudo se o Brasil chegasse até as finais. Meu amigo vendedor, que há tempos andava meio calado, só na zaga, esperando pra tirar de cabeça, resolveu se manifestar e disse apenas que, quer o Brasil chegasse ou quer não, não acreditava que o lucro esperado ia ser capaz de recuperar a posse da bola.
- Pra mim, é chutar pra escanteio o bom senso. É só uma Copa, é só um mês, as pessoas continuam sem dinheiro.
Mas não deu jeito. O empresário era cabeça dura e resolveu manter a escalação até o fim do jogo. O aumento das vendas na Copa era seu pênalti aos 43 do segundo tempo das eliminatórias, e ele chutou pra fora. O Brasil voltou mais cedo pra casa, e o empresário aposentou as chuteiras, foi ser jardineiro de uma família rica e nunca mais assistiu futebol.
Jul.12th.2006

Menos uma de amor

Não bastassem as capas dos jornais com suas clássicas e exaustivas manchetes sobre vendas no dia dos namorados, ainda há aqueles que se propõem a escrever sobre o tema. Acredito que é sempre uma idéia ruim, mas não tenho idéia melhor. Pra piorar, aprofundo o lugar-comum e falo sobre o dia dos namorados dos sem-namorados. Só porque faço parte do grupo, e um sem-namorado no dias dos namorados quer mesmo estar centrado no próprio umbigo, fingindo estar feliz com ele.
Meu umbigo, aliás, seria um bom namorado. Meu umbigo não precisaria de jantar caro mas saberia aproveitar um banho quente com sais relaxantes. Meu umbigo não reclamaria de eu olhar pra outros umbigos - afinal, quem não gosta de olhar outros umbigos? - e na verdade ele ficaria até bem feliz de ter algum outro umbigo junto a si. Meu umbigo nasceu no mesmo dia que eu e não esqueceria meu aniversário - nem ficaria chateado se eu esquecesse o dele, porque com certeza não faltariam cervejas para comemorar. (Meu umbigo também não reclamaria das minhas dores de cabeça nem dos meus ataques de hiper-libido, imagino).
Pena que não namoro o meu umbigo. Infelizmente, ele não sabe beijar, não faz idéia de onde fica o ponto G, não diz coisas românticas ao pé do ouvido (!) e nem mesmo me liga pra tomar uma cerveja.
Mas eu falava do dia dos namorados para os sem-namorados. Existem três tipos de sem-namorados. Os que não têm, não querem ter e juram que nunca terão; os que não têm mas dariam tudo pra ter; e os que não tem e nem mesmo lembram quando é o tal do dia. Você vai encontrar todos eles numa mesa de bar, na noite do dia D, rindo e se divertindo e discordando sobre namoros. Afinal, dia dos namorados é quase metalingüístico, e a discussão sobre o dia sempre cai na roda. E depois de muitas voltas, se perde numa curva entre um brinde e o próximo copo.
Os sem-namorados sempre acham que estão se divertindo mais que os com-namorados. E vice-versa. (Apesar de que os primeiros não fariam oposição alguma a um pouco de sexo, enquanto os segundos prefeririam uma cerveja àquele jantar caro, digo, romântico.) De fato, o causo todo pouco importa. Gastam-se palavras nesse ano, vãs palavras contra a manhã. E amanhã elas serão postas de canto, vão embrulhar peixes frescos, e só serão recicladas no próximo junho, quando acabarem as férias de Santo Antônio e, justo na véspera de seu dia, alguém ter a desinteressante idéia de fazer outra a crônica a respeito.
Desculpem se não concluo o raciocínio, mas ainda é preciso achar uma loja aberta e encontrar alguém que saiba dar um nó de gravata decente, porque eu, entre uma palavra e outra, acabei por me enforcar. O leitor se pergunta agora se leu errado quando eu disse que fazia parte do grupo dos sem-namorados – é que existe aquele tipo de com-namorados que faz questão de se dizer sem-namorados. A coisa toda ainda é uma incógnita taxonômica, mas infelizmente eu preciso mesmo ir.
Feliz dia dos namorados.
Jun.29th.2006

C'est l'amour

O mais interessante sobre o dia dos namorados é o dia seguinte. Dizem os jornais: "vendas crescem 20% em junho", "Celulares foram os preferidos pelos casais", e assim por diante. Todo ano as mesmas matérias, os mesmo índices, as mesmas fontes, as mesmas pautas. (Talvez, então, seja o mais desinteressante sobre o dia dos namorados o dia seguinte.) Mas não falemos do amanhã, porque isso é uma crônica sobre o hoje, sobre o Dia dos Namorados.
Entre sexo, paixão, sentimentos, jantares românticos, presentes, comércio e as cervejas dos sem-namorados, fiquemos com todos. Ficamos com Antônio e Lena - Madalena, para o leitor que não é íntimo. Madalena é classe média e não acredita em relacionamentos. Antônio trabalha 14 horas por dia, gosta dos filmes de Godard e cerveja sexta-feira à noite é religião. E eis que nesse ano o dia dos namorados era uma sexta-feira.
Encontraremos Antônio de sapato lustrado e calça social, de copo na mão e sorriso despreocupado. Ele não tem namorada e espera sua vez para jogar sinuca com o amigo já meio alegre três cervejas depois.
Encontraremos Madalena virando a esquina da Rua Augusta com a Avenida Paulista, acendendo um Marlboro vermelho e pensando sobre pílulas abortivas para casos de gravidez psicológica. Mas ela não está gravida, é apenas o efeito da sexta-feira fim de tarde que amorna o vento já meio gelado de junho. Madalena encontra uma amiga ao acaso e elas resolvem parar no bar mais próximo para uma cerveja.
Ora, vamos, é dia dos namorados e é claro que Madalena e Antônio tropeçarão no mesmo lugar esfumaçado e barulhento. E, por ser dia dos namorados, pulemos a parte de história em que Antônio e Madalena discutem sobre quem deve usar a mesa de sinuca primeiro. Pulemos a parte dos palavrões, da garotinha mimada e do engravatado pedante. Vamos direto para a parte em que os dois, com seus amigos acessórios, decidem jogar juntos - e ignoremos o clichê da guerra dos sexos aqui implícita. (Só para não tornar a história desagradável, ignoremos também as cantadas esdrúxulas que o amigo passou na amiga e as duas derrotas dos sujeitos meio bêbados para as duas garotas com já duas cervejas na primeira meia hora de conta.) Vamos logo para o momento em que o dia dos namorados vem à tona na conversa e, numa brincadeira, Lena e Antônio decidem namorar.
O comércio, é claro, tem horário especial para os esquecidos de última hora, e nada melhor que trocar presentes para entrar no clima - já que ainda são oito horas e, por enquanto, fica impróprio chegar na parte do sexo. Lena escolhe uma gravata azul-escuro com três listras azul-bebê, enquanto discute com a amiga (que até chegarmos na parte do jantar romântico não pode ir pra casa) sobre o que seria do mundo se não fosse a brilhante invenção do cadarço de tênis. Antônio acaba com a terceira cigarreira que vê, por pura falta de paciência com o amigo, que tenta desesperada e embriagadamente fechar o zíper da calça.
Lena se faz de agradecida pela cigarreira - apesar de já ter 4 em casa. Antônio finge não ter outras três gravatas iguais no armário e diz que adora azul - apesar de odiar a cor, que sempre o faz lembrar de um traumático conto lido na adolescência.
São quase nove e é hora de disputar com outros 5 casais (de verdade) uma mesa num restaurante a uma quadra dali. Os amigos acessórios a essa altura já estão (ele) no caminho de volta pro bar e (ela) comprando um chocolate na banda de jornal na entrada do metrô. Digamos que Antônio e Lena dividiram um prato de spaguetti e deram o primeiro beijo - que havia, por acaso, sido esquecido.
Pra não dizer que não falamos de sentimentos, a primeira discussão de relacionamento do casal vem na hora de pagar a conta. Em um ímpeto machista, Lena não quer pagar nada; num caso de pura conveniência, Antônio vira feminista e que dividir o valor. O fim dessa parte da história na verdade pouco nos importa, pois já são dez e seis e as crianças já fora para a cama - coisa que, é claro, esperamos que nossos personagens não demorem a fazer.
Algumas pessoas diferenciam amor de paixão afirmando que esta última é baseada em tesão. Não temos intenção poética alguma aqui, mas é dia dos namorados e essa hipótese nos parece levar a um final feliz - afinal, redundante, é dia dos namorados. Se o carro de Antônio não estivesse no mecânico, nossa história poderia levar Lena ao não mobiliado e recém alugado apartamento de Antônio. Para azar dele, no entanto, nossa história nos leva ao tapete azul-bebê do quarto de Lena.
Desnecessário continuar a história. Mas, já que o leitor parece tão curioso, basta dizer que a história não continua. Depois do sexo - e do sexo, e de mais sete "e do sexo" -, Antônio reabotou a camisa e Lena ascendeu outro cigarro. E os dois nunca mais se falaram. Ainda curioso, o leitor há de perguntar o que essa história toda tem a ver com dia dos namorados. De fato, muito pouco - mas isso só significa que, pelos por uns oito minutos, o assunto "dia dos namorados" foi muito pouco lembrado.
Feliz dia dos namorados.
Jun.28th.2006