22.10.07

Construtor do novo universo (ou Carta de suicídio) [tradução]

Gosto da forma como a caneta vermelha parece manchar esse papel. Gosto de pensar na forma como meu sangue há de manchar o chão do estacionamento. Com o tempo, o vermelho ficará mais e mais escuro, e em algum momento as pessoas vão estacionar seus carros e nem vão ver a mancha mais; no máximo, pensarão que é uma mancha de óleo - mas se pensarmos, não é o óleo que mantém o motor funcionando? não é a mesma coisa que poderíamos dizer sobre o sangue?
Minha professora de biologia costumava exaltar as funções e funcionalidades do sangue. Ela era católica, e apesar de nunca ter mencionado nada sobre suas crenças em sala, nós todos notávamos como ela parecia fervorosa quando falava sobre as teorias do 'começo da vida' e exemplificava a Teoria Criacionista católica. Ela nunca falou de Céu ou Inferno quando falava de morte ou corpos mortos.
Eu sempre gostei de imaginar os vermes comendo um corpo morto debaixo da terra, usando cada mísero pedaçinho de alguém que já não é mais para construir um universo totalmente parelelo, um universo sobre o qual pisamos todos os dias e nem nos damos conta. Gosto de pensar que eu serei útil agora. Meu inútil corpo vivo vai ajudar a construir um novo mundo.
Minha mãe costumava dizer que eu e meu irmão éramos parte de uma geração que mudaria o mundo. É claro, com o tempo nós descobrimos que o mundo está sempre mudando, apesar de que sempre me pareceu que gostamos de ir pro lado errado. E, também com o tempo, parece que nos acostumamos ao lado errado.
Mas eu não quero mais ir para o lado errado. Se a vida começou com os vermes, talvez eles provavelmente não deveriam ter pensado em evolução. Talvez eles provavelmente estariam melhor. Melhor ser um verme de verdade do que se sentir um. Melhor ajudar os vermes a fazer a coisa certa dessa vez - acredito que alguns deles perceberam o engano a tempo, formaram um grupo revolucionário e continuaram como vermes pra tentar consertar a coisa toda. Provavelmente o governo evolucionista os deixou pra lá porque não fariam diferença no grande projeto da 'Evolução rumo à Sociedade Humana'. Acredito que eles estavam certos e a revolução nunca saiu realmente do solo.
Nunca fui um revolucionário, é difícil acreditar em revolução, mesmo quando sua mãe diz que ela vai acontecer. O mundo faz você acreditar, em vez disso, em evolução. Isso não tem funcionado comigo até agora. Então de novo eu digo que vou tentar ajudar os caras que parecem estar indo para o lado certo. Minha mãe também sempre repetia que devíamos fazer a coisa certa.
Mãe, isso é o que eu acho que é a coisa certa a fazer. Não fique braba comigo, por favor, não chore sobre o meu caixão. Eu vou construir um mundo melhor. Eu vou estar nas suas memórias, pense em mim como a criança cega e feliz que eu era antes de ver o mundo. Desculpa por te decepcionar, eu vou me enterrar, mas existe uma boa razão pra isso, isso é o meu certo, mãe. Quando papai tiver seus momentos de sanidade, diga a ele que me fui para ser um construtor. Ele vai ficar feliz de saber que seu filho está fazendo um trabalho de homem, que está sendo forte. Você tem que ser forte por nós três, mãe.
Eu não vou ser uma mancha no chão, eu vou ser um construtor debaixo da terra e ajudar a construir um novo universo.

Oct.21st.2007 - traduzido/translated em/in Oct.22nd.2007

Builder of the new universe (or Suicidal letter)

I like the way the red ink seems to stain this paper. I like to think of the way my blood shall stain the parking ground. With time, the red will get darker and darker, and at some point people will park their cars and won't see the stain; at most, they will think it is an oil stain - but if you think, ain't it the oil that keeps the engine working? ain't it the same thing we could say about blood?
My biology teacher used to claim all blood's functions and funcionalities. She was a catholic, and though she never mentioned any of her believes in class, we all noticed how warmer she seemed when she talked about theories of 'begin of life' and exemplified the catholic Creational theory. She never mentioned Heaven or Hell when she spoke of death or dead bodies.
I always liked to imagine the worms eating up a dead body underneath the earth, using every little bit of someone who was not anymore to build another totally parallel universe, one we step on everyday and are not even aware of. I like to think I'll be useful now. My useless live body will help build another world.
My mom used to say me and my brother were part of a generation that would change the world. I mean, with time we got to know that the world is always changing, though it always seemed to me we like to go the wrong way. And also with time, we seem to get used to the wrong way.
But I don't want to go the wrong way anymore. If life began with worms, maybe they probably shouldn't have thought of evolution. They'd probably be better. Better actually be a worm than feel like one. Better help the worms do the right thing this time - I guess some of them noticed the mistake just in time, made a revolutionary group and stayed as worms to try to fix the whole thing up. Probably the evolutionary goverment let them be for they wouldn't make a difference in the huge project of 'Evolution towards Human Society'. I guess they were right and the revolution never actually came out the soil.
I was never a revolutionay, it's hard to believe in revoluiton, even when your mom tells you it's gonna happen. The world makes you rather believe in evolution. That hasn't worked with me so far. So again I say I'm gonna try to help the guys that seem to be going the right way. My mom also kept saying we were meant to do the right thing.
Mom, that's what I think is the right thing to do. Don't get mad at me, please, don't weap over my coffin. I'm gonna build a better world. I'll be in your memories, think of me as the happy, blind kid I was before I could see the world. I'm sorry to let you down, I'm going down, but there's a good reason for that, that is my right, mom. When dad has his moments of sanity, tell him I'm gone away to be builder. He'll be happy to know his son doing a man job, is being strong. You gotta be strong for the three of us, mom.
I'm not gonna be a stain on the ground, I'll be a builder underneath the earth and help building a new universe.

Oct.21st.2007

17.10.07

Ícaro terreno

Mayara morava, desde os 6 anos, no porão da casa de seu padrasto. O pai morrera antes dela nascer, e a mãe, sozinha com uma filha recém nascida, casara-se logo de novo. Mas não soubera escolher bem.
Lord Crapp era avarento e rabugento, só sabia reclamar, não pedia desculpas, por favor, nem agradecia, nem nada. Nos corredores da casa onde moravam, com 8 quartos e 3 empregados, os cochixos sobre a avareza do Lord só cessavam quando o mesmo abria a porta da biblioteca, gritava algumas ordens e voltava a fechá-la.
Não saía muito da biblioteca. A bem da verdade, só o fazia para tomar banho e deitar-se. Tomava o desjejum na biblioteca. Almoçava na biblioteca. Jantava na biblioteca. O quarto era enorme, quase uma Alexandria num cômodo de estantes em mogno. O pó tinha que ser tirado de madugada, pois Lord Crapp não admitia ser interrompido durante o dia em suas leituras
Quando a mae de Mayara morreu, a menina tinha apenas 6 anos. Alegre e cheia de saúde, vivia correndo pela casa. Ela já sabia, desde pequena, que a biblioteca era lugar proibido. Uma tarde, porém, Mayara brincava de esconde-esconde com alguns amigos imaginários e, escondida dentro do armário do escritório, viu quando o criado entrou sorrateiro
Mayara, que além de tudo era muito muito esperta, ficou bem quietinha e assistiu o homem bater com o nó dos dedos nas paredes do escritório. Ela não entendeu o que ele estava fazendo, até que atrás de uma pintura antiga que ele tirou da parede, ela viu uma caixa. Com certeza ele estivera procurando a caixa. A caixa tinha uma fechadura estranha, que ele ficou girando pra um lado e para o outro, até que ela se abriu e de lá a pequena Mayara viu o criado tirar um saco cheio de jóias. Depois disso, ele rapidamente fechou a caixa, recolocou o quadro na posição, e saiu tao silenciosamente quanto entrara.
Mayara logo deduziu o que acontecera, correu para avisar o padastro. Sem bater, abriu a porta da biblioteca gritando, 'mi lord, mi lord! o criado acaba de roubar-lhe as jóias de uma caixa no escritório, aquela que fica atrás do quadro de seu pai!'
O padrasto, furioso, pareceu não ouvir a denúncia da menina e, puxando-a pela orelha, arrastou-a até o porão, trancafiando-a ali. Mayara não entendeu o que acontecia, afinal, não devia ela ter-lhe avisado? Mesmo sem entender, conformou-se ao castigo e acabou adormecendo.
Quando voltou a acordar, encontrou uma pilha de roupas jogada a seu lado. Continuou sem entender. Não ousaria reclamar do castigo, jamais, e se tivesse que ficar mais tempo trancafiada por ser insolente? Assim, ela chamou pelos amigos imaginários, que chegaram ao porão por um túnel secreto, e ali brincou com eles até que a ama apareceu. Atrás dela, o mordomo trazia um baú; atrás dele, o criado ladrão, com a mao decepada embrulhada numa faixa improvisada, trazia o estojo que costumava ficar em cima da penteadeira de Mayara. Ela continuava sem entender. Pra que trazer aquelas coisas para o porão? Seria tão longo assim o castigo?
Ela não queria ficar muito tempo ali, gostava de correr ao sol, subir nas árvores, sentir o cheiro das flores desabrochando na primavera e da terra molhada de chuva e de neve no inverno! O porão era escuro, abafado, úmido, fedido.. e ela nem poderia ver os passarinhos dali, pois não havia janelas!
A criada mandou os rapazes embora e sentou a menina numa banqueta, desarrumou-lhe os cabelos, vestiu-a para dormir e mandou que se deitasse. Daí em diante, Mayara nunca mais viu a luz do sol.
Quando seus amigos imaginários não voltaram mais para brincar com ela, começou a sentir-se só. Aprendera a ler muito cedo, por causa da obcessão do padastro, e então pediu à criada que lhe trouxesse livros, um de cada vez. Pega-los-ia à noite, quando fosse limpar a biblioteca, e os devolveria na noite seguinte. A princípio, a criada ficou com medo e não aceitou o pedido. Mas depois, pensando em sua própria filha que brincava alegre com as crianças da redondeza, pensando em sua falecida ama que casara-se com o Lord apenas para proteger sua filha.. cedeu.
E assim Mayara viveu por 10 anos. Sabia quando era noite ou dia por causa da hora que a criada aparecia. Vinha cedo, quando acabava a faxina, entregava-lhe o livro e voltava com o almoço. À noite, trazia-lhe a janta e pão para a manhã seguinte - Mayara não dormia mais depois que recebia seus livros.
Até que um dia a criada não veio. Mayara achou que acordara cedo demais, tentou voltar a dormir e não conseguiu. Recomeçou a ler o livro que lera no dia anterior, e nada da criada. Achou que não tinha dormido nada, afinal. Não fazia idéia de que horas eram, estava com fome como se já fosse de manhã, era estranho. Não sabia dizer quanto tempo se passara até que a criada finalmente apareceu.
- Mi Lady! Mi Lord está morto!
Mayara espantou-se. Morto? Mas como?
- Foi assassinado!
Mas assassinado por quem, meu deus? Não que o padrastro fosse a pessoa mais amável do mundo, mas um homem que passa o dia trancado na biblioteca, como há de fazer inimigos?
A criada não sabia explicar. Olhou para a menina com os olhos cheios de lágrimas de felicidade e disse que agora ela era dona da fortuna e da própria liberdade. Que aproveitasse pois, estava um dia lindo de verão na rua.
Verão! Mayara não sabia o que era sol, árvores, pássaros, desde.. desde quase sempre! Abraçou a criada e saiu correndo escadas acima, atravessou a casa correndo como se ainda tivesse 6 anos, foi direto para o quintal.
Ah, mas que lindo! flores, flores, flores! As árvores frondosas com as copas verdes, verdes! O céu azul como ela nunca lembrava de ter visto! E o cheiro, da grama molhada do orvalho, das flores, da água do jardineiro!
Olhou o sol e imaginou, pelo que lera, que seriam por volta de 9 da manhã. Tinha muito tempo ainda para aproveitar o sol e a paisagem, lera que no verão o sol nasce às 5 da manhã e se põe só às 10 da noite.
Mas o que é bom dura pouco, e para azar de Mayara, uma onde de calor chegava à região naquela manhã. Mayara não se importou que estava com muito calor, imagine, 10 anos sem estar no sol, é claro que o corpo não estava acostumado. Ao meio dia a criada veio chamá-la para que entrasse, para que se protegesse, acabaria passando mal, estava mais quente que o normal, não era só ela, todos na casa sentiam. Mas Mayara nao lhe deu ouvidos, continuou correndo e brincando.
A certa altura, a criada não quis mais arriscar a própria vida para salvar a menina, afinal, tinha sua prórpia filha pra cuidar! Chamou-a mais uma vez sem ser ouvida e entrou chorando, chamou a menina e foram para um quarto muito úmido da casa, onde poderiam se proteger das altas temperaturas.
A criada nem viu quando, logo em seguida, Mayara reeencontrou seus amigos imaginários. Perguntou-lhes onde haviam estado nos últimos anos, eles disseram que foram para a escola, viajaram, fizeram novos amigos. Mayara ria e ria. O mundo cintilava à luz do sol! Eram 2 da tarde e o excesso de calor já lhe fazia delirar.
Quando, três dias depois, o sol parou de tranformar a região num inferno na terra, a criada encontrou Mayara deitada sob uma árvore, no mesmo vestido rosa com verde-claro que usava na ultima vez em que a vira. Já de longe, pressentiu o que acontecera, mas era presciso checar. Os lábios de Mayara estavam roxo claro, olhos fechados, um sorriso sinceramente feliz no rosto, uma flor branca entre os dedos e a outra mao como se segurasse uma mao invisível..

Oct.17th.2007