24.2.09

Das pessoas que a gente ama

E assim ficou. As mãos enterradas nos bolsos, o olhar perdido no movimento da rua. Dez, quinze minutos. Meia hora, uma hora. Os carros se tornaram escassos, numa travessa duas quadras à direita um poste piscava de forma irritante. Mas, para ele, esse detalhe passou desapercebido.
Notou, mais de hora depois, o silêncio que se fazia. Especificamente, notou o barulho de um carro velho que virou na primeira à esquerda e sumiu com seu efeito Doppler. Foi quando o carro sumiu que ele percebeu o silêncio. Já devia ser tarde. A bem da verdade, já era tarde antes. Um ônibus passou sem parar pela parada. Recortadas contra a luz, três cabeçinhas passaram voando - uma delas, o cobrador.
Sacudiu a cabeça. Percebeu que estava arrepiado, era uma daquelas noites de verão em que uma frente fria qualquer tira os casacos e cobertas leves do armário. Sentou em frente ao computador. Mas não viu a tela, parecia que o monitor estava mais para abajour. Mesmo todo o tempo que passara na janela não refrescara os pensamentos.
Acendeu um cigarro. Tragou fundo. Não é como se ajudasse, sabia que não ajudava. Mas é que já não importava tanto. Sentiu a fumaça entrar e sair. Não conseguia tirar da cabeça aquela pergunta: por que as pessoas que a gente ama não conseguem se sentir amadas?
Às vezes, por ódio ou angústia, a pergunta virava, "por que as pessoas que a gente mais ama não conseguem se sentir pelo menos um pouco amadas?". Mas isso era só um desdobramento óbvio da questão anterior. Não entendia. Não entendia para onde iam os significados dos esforços diários. Não entendia de onde vinha a invisibilidade das coisas que só os outros enxergavam.
Apagou o cigarro com força. Ainda estava quase na metade, mas não fazia diferença. Sacudiu a cabeça novamente. Olhou em volta, sem ver muita coisa. Viu a cama e o travesseiro, o telefone, o celular conectado ao carregador, a mochila no canto em cima de uma cadeira. Teve vontade de chorar, de ligar, de mandar uma mensagem, de abrir uma janela de conversa no MSN, de fugir. Coçou a cabeça.
Pra quê? Pra quem? Ligar pra alguém que não vai entender, ou falar com quem não vai ligar. Escrever algo que não vai fazer sentido, ler uma resposta que parece de alguém que não se importa. Não seria a primeira nem a última vez. E então voltava ao início de todo o raciocínio.
Idéias estúpidas essas que a moral e a ética dos nossos pais nos levam a ter. Liberdade, igualdade, fraternidade, uma mentira na qual queremos desesperadamente acreditar. Gesticulava um novo cigarro aceso. Moldamos nossos atos de uma forma que não faz o menor sentido fora das quatro paredes do nosso pensamento, e depois pensamos que o mundo é que está deformado. Andava em círculos pelo quarto, tragando rapidamente e soltando as fumaça entre as frases. No fim das contas, talvez não é que as pessoas que a gente mais ama não conseguem se sentir pelo menos um pouco amadas, vai ver é a gente que não consegue amar pelo menos um pouco as pessoas que a gente mais ama.
Atirou a ponta do cigarro pela janela. Assistiu a brasa fazer uma parábola, rolar alguns metros no chão e se apagar numa poça d'água próxima a um bueiro. Suspirou.
Deixou os braços penderem ao lado do corpo e caminhou até a cama, onde se deixou cair pesadamente. Suspirou mais uma vez. Tudo o que queria era poder mostrar a ela o quanto a amava. Fazer um desenho de um sorriso lindo, de olhos brilhosos, de um coração que fazia o seu bater da forma que se espera que bata um coração. Tocar uma música sobre como ela era importante e essencial em sua vida. Fazer uma poesia despojada de clichês para explicar o amor tão clássico que sentia.
Com o peso da angústia, suas pálpebras foram fechando. Como lutava para mantê-las abertas lutava para mostrar a ela o que sentia, mas sua luta era nos dois casos vã. Enquanto lutamos mal nasce a manhã, balbuciou. E adormeceu.

em 24.02.2009