2.4.09

À espera

Existe algo particularmente interessante sobre as garotas muito magras. Sobre o jeito desengonçado como mexem os braços molemente, quase como se não fizessem parte do corpo. Uma impressão de desproporcionalidade que vem da magreza extrema e que não passa de impressão. Mas é bonito.
As pontas dos ossos salientes nos ombros e cotovelos, os joelhos que sempre parecem mais quadrados no meio das longas pernas. Parece, às vezes, que todas as garotas magras de algum modo ondulam ao andar. Mas é bonito.
Quando ela passou com os cabelos exagerada e assim naturalmente lisos, marrados num laço frouxo e fora de centro, foi inevitável não notar os lábios finos. Olhou-me por um instante e voltou a encarar o chão, sem mudar o ritmo das passadas. A alça da blusa escorregou e logo os dedos nodosos apressaram-se em colocá-la de volta no lugar. Eu teria continuado a observá-la, mas outra garota no ponto de ônibus deu um passo à frente e olhei para o outro lado.
Nada de ônibus. A menina se balançava para frente, irrequieta. De fato, esta não era a primeira nem a segunda vez que o fazia nos últimos 15 minutos. Facilitaria pra mim se ela pudesse só avançar em direção à beira da rua caso a linha 11 estivesse chegando. Mas ela suingava, sem objetivo, apesar das minhas observações mentais sobre sua conduta.
A magrela estava agora já longe demais para que pudesse observar as pontas dos ossos se mexendo engraçadas sob a pele esticada. Suspirei.
No ponto de ônibus uma mulher gorda gritou com o filho gordo. Com as pernas abertas para que coxas não se encostassem, ela gesticulava com as mãos pra frente e pra trás. Não sei o que dizia - é uma das vantagens de ter sempre o fone de ouvido com música alta entalado nas orelhas -, mas o moleque não parecia se importar. Continuo batendo com a garrafa de plástico vazia no meio-fio até que a mãe se levantasse - não sem algum esforço - e o puxasse com um beliscão no braço para o espaço a seu lado no banco.
A garota ansiosa balançou de novo e, sem surpresa, não havia nenhum ônibus chegando. Com certeza aquela menina tinha gastrite. Ou algum vício. Além de não parar quieta, batia com o cartão do ônibus na palma da mão. Devia ser um coro irritante, o cartão da sujeita e a garrafa do pirralho. Ainda bem que eu não ouvia nada.
No meu mundo auditivo uma cantora de sotaque engraçado impunha a voz sobre um baixo pesado e uma bateria cheia de pratos. Dava quase para ver uma banda de roqueiros cabeludos batendo cabeça em um palco mal iluminado enquanto um bando de roqueiros cabeludos vestindo camisetas pretas sacode os corpos suados. Éca.
Foi irritante ver o ônibus 11 passar e a menina gástrica não se mexer. Por certo ia pegar o 7, única outra linha que parava ali. Suspirei e aumentei o volume da música. A mulher gorda se fora com seu filho irritante, então ocupei seu lugar no banco. Ao meu lado, um garoto tímido de uniforme escolar sentou tão na pontinha do assento que parecia que ia cair.
Devia ter seus 12 anos, cabelos cacheados e bem escuros, olhos castanhos quase pretos e uns lábios carnudos e ressecados. Ia ser um homem bonito, notava-se. A mochila enorme a suas costas parecia a concha de um caramujo. Acho que todas as crianças em idade escolar têm essa mesma aparência. Ele soltou as alças dos ombros. Vi que me olhou rapidamente de canto de olho. Tornou a fazê-lo. Levantou, pareceu-me que tremia.
- Você é muito bonita - disse, olhando-me nos olhos, e atravessou correndo em frente a um caminhão cegonha que passava.
Chegou morto ao hospital.

em 26.03.2009

24.2.09

Das pessoas que a gente ama

E assim ficou. As mãos enterradas nos bolsos, o olhar perdido no movimento da rua. Dez, quinze minutos. Meia hora, uma hora. Os carros se tornaram escassos, numa travessa duas quadras à direita um poste piscava de forma irritante. Mas, para ele, esse detalhe passou desapercebido.
Notou, mais de hora depois, o silêncio que se fazia. Especificamente, notou o barulho de um carro velho que virou na primeira à esquerda e sumiu com seu efeito Doppler. Foi quando o carro sumiu que ele percebeu o silêncio. Já devia ser tarde. A bem da verdade, já era tarde antes. Um ônibus passou sem parar pela parada. Recortadas contra a luz, três cabeçinhas passaram voando - uma delas, o cobrador.
Sacudiu a cabeça. Percebeu que estava arrepiado, era uma daquelas noites de verão em que uma frente fria qualquer tira os casacos e cobertas leves do armário. Sentou em frente ao computador. Mas não viu a tela, parecia que o monitor estava mais para abajour. Mesmo todo o tempo que passara na janela não refrescara os pensamentos.
Acendeu um cigarro. Tragou fundo. Não é como se ajudasse, sabia que não ajudava. Mas é que já não importava tanto. Sentiu a fumaça entrar e sair. Não conseguia tirar da cabeça aquela pergunta: por que as pessoas que a gente ama não conseguem se sentir amadas?
Às vezes, por ódio ou angústia, a pergunta virava, "por que as pessoas que a gente mais ama não conseguem se sentir pelo menos um pouco amadas?". Mas isso era só um desdobramento óbvio da questão anterior. Não entendia. Não entendia para onde iam os significados dos esforços diários. Não entendia de onde vinha a invisibilidade das coisas que só os outros enxergavam.
Apagou o cigarro com força. Ainda estava quase na metade, mas não fazia diferença. Sacudiu a cabeça novamente. Olhou em volta, sem ver muita coisa. Viu a cama e o travesseiro, o telefone, o celular conectado ao carregador, a mochila no canto em cima de uma cadeira. Teve vontade de chorar, de ligar, de mandar uma mensagem, de abrir uma janela de conversa no MSN, de fugir. Coçou a cabeça.
Pra quê? Pra quem? Ligar pra alguém que não vai entender, ou falar com quem não vai ligar. Escrever algo que não vai fazer sentido, ler uma resposta que parece de alguém que não se importa. Não seria a primeira nem a última vez. E então voltava ao início de todo o raciocínio.
Idéias estúpidas essas que a moral e a ética dos nossos pais nos levam a ter. Liberdade, igualdade, fraternidade, uma mentira na qual queremos desesperadamente acreditar. Gesticulava um novo cigarro aceso. Moldamos nossos atos de uma forma que não faz o menor sentido fora das quatro paredes do nosso pensamento, e depois pensamos que o mundo é que está deformado. Andava em círculos pelo quarto, tragando rapidamente e soltando as fumaça entre as frases. No fim das contas, talvez não é que as pessoas que a gente mais ama não conseguem se sentir pelo menos um pouco amadas, vai ver é a gente que não consegue amar pelo menos um pouco as pessoas que a gente mais ama.
Atirou a ponta do cigarro pela janela. Assistiu a brasa fazer uma parábola, rolar alguns metros no chão e se apagar numa poça d'água próxima a um bueiro. Suspirou.
Deixou os braços penderem ao lado do corpo e caminhou até a cama, onde se deixou cair pesadamente. Suspirou mais uma vez. Tudo o que queria era poder mostrar a ela o quanto a amava. Fazer um desenho de um sorriso lindo, de olhos brilhosos, de um coração que fazia o seu bater da forma que se espera que bata um coração. Tocar uma música sobre como ela era importante e essencial em sua vida. Fazer uma poesia despojada de clichês para explicar o amor tão clássico que sentia.
Com o peso da angústia, suas pálpebras foram fechando. Como lutava para mantê-las abertas lutava para mostrar a ela o que sentia, mas sua luta era nos dois casos vã. Enquanto lutamos mal nasce a manhã, balbuciou. E adormeceu.

em 24.02.2009