18.7.07

Lá (si dó)

Então ele sentava na beira do rio, com a caixinha de fósforos que acabara de comprar, e ficava arremessando os palitos em chamas dentro d'água. Dizia que aquilo o acalmava e distraía. Se cansava de acender os fosfóros pra depois arremessá-los, ficava inventando travessuras - como aquela que todo garoto faz de apoiar o palito na caixinha, com um ângulo empírico, e dar um peteleco para fazer o fogo nascer. Sentado na beira do rio, quando a caixinha de fósforo acabara de esvaziar, ele ficava olhando a fileira de palitos que navegava sem pressa com a correnteza leve da água. Às vezes tinha companhia, companhias, e as fileirinhas de fósforos formavam pequenos caminhos que nenhum deles podia pisar. Era como construir pequenmos sonhos de barro na certeza de que a chuva viria para destrui-los - assim como ela sempre vinha para espalhar os palitos apagados, tirando-os do seu curso natural rumo a sabe-se lá onde. (Que devia ser um lugar bem legal, até, ele pensava, porque o rio corre pra lá, e o vento sopra pra lá - e até as árvores e o canto dos passarinhos se inclinam pra lá.)
E um dia ele foi embora. Não o rio, é claro, que o rio nunca foi de ficar. Mas ele... ele deixou pra trás quase nada, a não ser o rio e o grande amor de uma vida - um daqueles amores de contos de fadas, sabe, apenas sem a parte do felizes para sempre. E ele foi pra lá, pra (sabe-se) lá onde, onde ele poderia encontrar uma grande bacia cheia de palitos de fósforos queimados, que ele identificaria com sendo seus. (Com sorte, talvez eles estivessem amontoadinhos de forma tão organizada que pareceriam uma casa, a morada dos seus sonhos).
É pena mesmo que não tivesse uma caixona cheia de fósforos no fim do rio. Mas ele se conformou com a beleza grandiosa do oceano. Então sentava-se na beira da praia e ficava jogando conchinhas no mar. Não era tão divertido, pensava, por mais que se invente mil maneiras de arremessá-las. As conchinhas sempre afundavam, de forma ou de outra, e ele nem mesmo podia vê-las até a areia lá embaixo - e decepcionava-o um pouco também o fato de saber que elas acabariam enterradas e enterradas e enterradas. Soterradas. Como cadáveres. (O interessante dos palitos de fósforo é que, como não afundavam, podiam continuar para lá, lá o onde o horizonte vira abismo e o oceano deve despencar numa imeeensa catarata - apesar de que ele não sabia ainda que existiam cataratas).
E aí ele pensou em ir pra lá. Mas achou uma puta sacanagem ter que ir tão longe por causa de palitos de fósforos que formavam caminhos calmos na superfície da água. Agoniou-se. Decidiu que faria barquinhos de papel cartão, fortes o suficiente pra que subissem contra a correnteza do rio. Acabou, ele mesmo, destruindo os barquinhos inúteis. Desistiu, então, do oceano, e resolveu, ele mesmo, fazer o caminho de volta, na contramão do rio.
E sentava-se na beira do rio, de novo, com a caixinha de fósforo que voltara a comprar, e distraía-se vendo a fileira de palitos apagados navegar calma rumo ao oceano - de onde, agora ele sabia, os fósforos seguiriam para sabe-se lá onde. No caminho de lá, no entando, numa parte do caminho que ele já não podia ver, o amor de uma vida encontrou os palitos e soube que ele voltara. (Como um amor de um conto de fadas muito bonito, o amor de uma vida foi reencontrá-lo e juntar mais palitos aos dele, para construírem um caminho juntos).
Ainda assim o conto de fadas não foi feliz pra sempre. Foi feliz até que a cidade toda descobriu o amor dos dois e os pais de nenhum dos dois gostaram de ouvir aquela história - a aí o conto, que fora feliz dos 12 aos 15 anos, ficou infeliz dos 15 aos 18, após o que as vacas magras foram pastar em outros pastos e os dois fugiram para além do oceano, trilhando o caminho desenhado por seus palitos de fósforo. Eles ficaram meio decepcionados que no horizonte o oceano não formava catarata coisíssima nenhuma e, do mesmo jeito, ao chegar em outras terras, não havia nenhuma praia de palitinhos de fósforo. (Mas isso só se sabe se sabendo, porque depois que os dois partiram nunca mais ninguém ouviu falar deles. Além dessas reminescências, sobrou dessa história só a página amarela de um jornal velho com a história dos dois - e provavelemente uma ilha bem pequena de palitos de fósforo apagados, bem perdida sabe-se lá onde.)

May.8th-9th.2006

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