30.5.08

Morangos e amores

Morango é um pseudofruto originado de vários ovários de uma mesma flor. É isso que dizia minha professora de biologia, mas na verdade nem sei por que ainda me lembro disso. Morango é bom no inverno, com chocolate. É isso que pensa minha priminha de 12 anos, e como nessa idade ainda é simples ser feliz, eu sempre compro palitinhos de morango com chocolate pra ela. Morango é algo que não deve ser usado em bolos. É isso que acha meu irmão, porque ele não come bolo de morango. Morango é o cheiro do creme hidratante que as duas mulheres-amores da minha vida usavam. Marcas diferentes de creme, cheiros de morango iguais.

Veja bem, não falo só de morangos. Não falo só de cremes de morango comuns. Falo dos cremes de morango que grudam na pele e na roupa da gente, e iniciam uma perseguição inaudível aos nossos desejos mais profundos. Nada pior do que o cheiro dela na minha camisa quando ela não está por perto. E, veja bem, não falo dela ela. Mas falo dela elas. Porque as duas usavam creme de morango. Tenho olfato aguçado. Comida pra mim tanto faz como tanto fez, apesar do vício assumido por chocolate. Amo música, sinceramente, tenho uma estante cheia de CDs e um HD inteiro de mp3. Mas o cheiro me enlouquece. O olfato é o meu sentido mais sensível.

Vou contar a história. Não diga que não quer ouvir, que já entendeu, porque não entendeu nada. Sei que está achando que é paranóia com o maldito cheiro de morango. Acontece que ele está no meu suéter agora, percebe? Consegue sentir? Pois eu podia lavar o suéter agora mesmo e continuaria sentindo. Porque o cheiro está na minha pele. Entende, é uma coisa que é olfato, mas também é meio tato. É subcutâneo. E o que corre por debaixo da minha pele junto com esse cheiro é desejo. Vou contar a história. Resumidamente.

João amava Tereza, que amava Maria, que não amava ninguém. Bom, não foi bem assim que Drummond escreveu, mas minha história vai mais ou menos por aí. Namorei por quase três anos. Não vou entrar em detalhes. Mas foi complicado. Digo, sempre é, não é, mas esse foi complicado. Foi à distância. Foi às escondidas. Foi contra tudo e contra todos. Foi intenso pra felicidades inenarráveis e intenso para desgastes incomparáveis. Aí ela acabou comigo. Meu primeiro grande amor. Partiu meu coração, para usar de mais romantismo, um romantismo quase sertanejo. No deixa disso, camarada, me dá um cigarro, foi foda.

Ela terminou. E parou de falar comigo. Quase completamente. Se aparecia, era pra fazer grosseria. E eu aceitava. Virei um serzinho inexistente. E, na verdade, se eu ainda existia, era uma existenciazinha vil e infame, uma existência rastejante, uma existência quase inexistente de tão humilhada, uma existência transparente e semi-invisível. Corri atrás dela. Não pedi pra voltar, porque não daria certo. Tentei amizade. Tentei ignorá-la, mas foi esforço vão. Para ela, na verdade, não parecia ser esforço nenhum ignorar a minha existência. E cada vez mais eu inexistia. E decaí. Mas não a culpava. Não é que me culpasse também, mas não a culpava. Era imatura, era indecisa, era sem querer, era sem saber, era por não poder. Talvez não fosse nada disso, mas era nisso tudo que eu acreditava. E quanto mais acreditava, mais meu corpo e minha dignidade pareciam enterrar-se no chão. Aquele mesmo chão de onde brotavam os morangos.

Minha Tereza não amava Maria, minha Tereza estava mais pra Maria-que-não-amava-ninguém. Na verdade, amava-me, como percebeu no fim das contas. Mas aí já era um pouco tarde. Minha Tereza era mais alta que eu, loirinha, olhinhos azuis, uma graçinha de garota. Nem um pouco sutil. Um corpo na medida do que eu desejava, um cérebro maior do que eu esperava, uma personalidade mais difícil do que eu imaginava. Minha Tereza morava com os pais, numa cidade do interior. E usava creme de morangos nascidos do chão que agora parecia formar amálgama peculiar com meu corpo.

O fato é que, como os morangos nascem de pequenas sementinhas pretas e inocentes que irrompem do solo úmido, crescem e se tornam esses frutinhos pecaminosos e cheirosos, também eu acabei brotando da lama, afinal. Inesperadamente, depois da última chuva do mês de março. Era o fim da primavera. Não, março não é o fim da primavera. E talvez por isso eu não estivesse esperando aquela última chuva, aquelas últimas gotas que despertaram meus fitohormônios e me fizeram lançar a primeira folhinha verde na direção do sol. Fazia um sol quente naquele dia. Mas o dia era fresco. Excelente clima para o desenvolvimento de um morango.

Foi uma amiga que me apresentou à minha Maria – que na verdade não era a Maria que não amava ninguém. E sem que eu percebesse, quem amava Maria era eu. Não amar de amor, de amor que nasce, cresce e fortifica, amar de amar pueril. Mas era amar. E eu amei Maria sem perceber. E Maria me amou também. Logo na primeira noite, eu diria.

Era a primeira vez que eu amava na primeira noite. Maria também. Mas Maria já amara alguém, antes. E eu também, afinal. E Maria e eu nos amamos até às seis horas da manhã. Sorrimos um sorriso pontual. E depois dormimos. E minhas folhinhas verdes aproveitaram o sol para entrar em atividade ativa e crescer. Logo, logo eu me tornaria um pseudofruto vermelho e grande e pecaminoso. Mas eu não sabia disso ainda. Naquela manhã, depois de dormir e quando finalmente acordamos, eu só conseguia ver que minha folhinha verde quase inexistente agora parecia visível.

Minha Tereza não gostou dessa história de Maria. Maria, Maria, é o som, é a cor, é o suor, é o caramba. Quis-me de volta. Puro e simples assim, queria-me de volta. Percebera que me amava. Que sempre me amara. Sofrera sem mim durante todo aquele tempo, achando que eu ficava melhor sem ela. Mas percebera que não vivia sem mim. Perdera-se na vida, andava bebendo, fumando. Queria-me de volta. Queria-me de volta como a criança quer de volta o sorvete de morando que acaba de cair. Pois eu caíra. Fundo o bastante para me tornar indesejável até no fundo da terra, que me expelira de volta e forçava-me contra a claridade do mundo fora da fossa. A criança simplesmente não pode mais comer o sorvete de morango que cai no chão. E não é certo também que a mãe lhe dê outro. Sorvetes de morango não caem no chão por acaso, há avisos, há sinais. Ninguém pode comer um sorvete de morando sem fazê-lo com todo cuidado, carinho, respeito e atenção. Descuidou, poft, o sorvete cai e aí já era.

Na verdade, no começo, não foi assim tão já era. Eu era um sorvete de morango que podia (e, de fato, muitas vezes queria) pular de volta, limpinho e sem bactérias, em cima da casquinha crocante. Fingir que nunca saíra de lá. Acontece que no caminho de volta do fundo da fossa eu encontrara Maria, e parara a meio caminho antes de subir de volta na casquinha crocante, meio suicida. Parei, repensei. E decidi que não voltaria. Caí ao chão, porque era lá que precisava pôr os pés, criar raízes, tornar-me um morango de verdade.

Mas nada é realmente simples, como tudo em biologia também não é, é tudo de uma complicação inimaginável que só os biólogos entendem - acredito que engenharia e biologia são, na verdade, universos paralelos que competem entre si para dominar o mundo dos reles mortais dessa ingrata e abstratamente palpável área de humanas. Mas eu dizia, nada é realmente simples como parece. Antes de virar morango, precisei ser flor num galhinho leve e frágil, flor que dançava ao sabor do vento sem saber se pendia em direção a minhas novas raízes ainda juvenis, ou se tentava alcançar a casquinha crocante de onde eu caíra enquanto ainda bola de sorvete de morango. Parece engraçado pensar que antes de ser morango fui sorvete de morango. Mas a vida é feita de opostos assim mesmo, não é?

Minha Maria tinha uns dez centímetros a menos que eu, também era loira, um pouquinho acima do peso, um pouquinho a mais de peito, um muito a mais de paixão. Minha Maria tinha feito cirurgia no coração, era menos sensível do que eu imaginava, mais forte do que aparentava, tão inteligente quanto eu esperava. Era doce. Minha Maria morava com os pais, a menos de cinco quilômetros da minha casa. E usava um creme de morangos nascidos do chão que agora parecia me impulsionar ao céu e ao sol.

A cada dia que passava minhas raízes pareciam mais fortes e mais fundas nesse chão. E chegou o momento em que precisei decidir. Queria ainda achar que tinha asas e voar de volta para a casquinha crocante de onde caíra, mas tinha medo de derreter no meio do caminho, ou de me esfacelar como se fosse matéria sólida chegando de volta às mãos da minha Tereza-menina tão descuidada. Mas também queria continuar presa ao solo firme, que a cada dia me alimentava e nutria minhas esperanças de me tornar um morango robusto e pecaminoso. Não me lembro bem das aulas de biologia sobre frutos e pseudofrutos, mas lembro-me das aulas de física, e lembro-me de como a gravidade existia. A gravidade me puxava para o chão firme onde eu me enraizava, e se tinha raízes não podia ter asas, e foi assim que escolhi não voltar para minha Tereza. Não é que escolhi minha Maria, só não escolhi minha Tereza. E o resto, acredito que foi mera força da gravidade e creme de morango.

Minha Maria estava usando creme de morango quando saímos pra jantar aquele dia. Eu senti assim que a abracei, no carro. Quase mudei de idéia sobre que pista da grande avenida tomar. Mas mantive o foco, tínhamos algo a comemorar. O que, exatamente, não importa agora, porque fosse o que fosse fazia parte do que nos tornáramos. Cada dia era um dia a se comemorar. Lembro que comemoramos nosso aniversário de três semanas, eu dei a ela um texto erótico que escrevi, ela me deu uma visita surpresa com cheiro de morango. Mas não vem ao caso agora. Fomos jantar. Ela me deu a mão na entrada do restaurante, e senti meu corpo se arrepiar. Não era tesão - nem ainda, nem puro e simples. Era um arrepio que me fez sorrir, fez meus olhos brilharem.

Sentamos. Pedimos as entradas. Não lembro o que era, mas era bom. Pedimos a bebida, um cabernet sauvignon. Um leve torpor tomava conta da minha cabeça quando a comida chegou. Era um restaurante fino, até caro, mas era uma comemoração e valia a pena. Comemos com prazer, enquanto conversávamos. Ela estava linda naquela noite, e eu podia sentir o cheiro de morango mesmo quando a taça de vinho me estava bem debaixo do nariz. O cheiro de morango tinha ficado em minhas mãos, e sempre que elas iam e vinham, levando o garfo ou o vinho, eu sentia o cheiro aumentar e diminuir. Sentia minha pele se arrepiar, sentia que aqueles morangos cremosos estavam a um passo de tornarem-se pecaminosos. Pedimos a sobremesa. Ela escolheu, como sempre fazia. Ela sempre escolhia. Era morango, é claro. Com chantilly, afinal, para comemorar. Senti meu corpo estremecer, senti a garganta secar. Cada garfada era um pensamento impuro que surgia em minha mente. Cada garfada era um impulso pulsante que me corria freneticamente. Ela sorria e eu sorria, e acho que ela teve a mesma idéia que eu. Pagamos a conta.

Entramos no carro. Dei a partida e ela colocou a mão suavemente na minha perna. Como sempre fazia. O sorriso brincava em seus lábios, e eu entendia. Pensava o mesmo que eu, eu sabia. Nosso destino era rápido e certeiro, meu apartamento vazio, o fim daquela noite de sexta e o sábado inteiro. No elevador nos beijamos loucamente e quis pedi-la em casamento. Não o fiz porque minha boca estava ocupada demais. Meu corpo estava ocupado demais. Não tanto quanto estariam depois. Botões e zíperes, portas e lençóis, suspiros e sensações. Morangos espalhados sobre cada centímetro quadrado do corpo dela que se estendia diante e debaixo de mim, morangos macios, morangos mordíveis, morangos e mais morangos, morangos irresistíveis, morangos carnívoros, morangos reativos, morangos que palpitavam sob os meus dedos, morangos que suspiravam, morangos que cada vez menos cheiravam a morangos, morangos impuros, morangos e desejos, morangos e mais morangos e mais morangos, morangos, morangos!..

Ela dormiu com a cabeça nos meus seios. Sentia sua respiração acompanhando o ritmo do meu coração. Senti os batimentos perderem a pressa. Senti os pulmões dela perderam a pressa. Senti a mão dela pousada levemente na minha barriga. Senti seu cabelo liso brincando entre os meus dedos. Senti o cheirinho de morango que ainda vinha do pescoço dela. Quis de novo pedi-la em casamento, mas ela adormecera. E certa de que ela era minha terra firme, meu porto seguro de onde não mais precisaria me despedir, de onde não mais seria forçada a partir, também eu adormeci.

Quando acordei na manhã seguinte estava sozinha. Onde estava minha Maria? Na cozinha. Minha baixinha cozinheira, só de avental, preparando algo simples pra repor as energias. Tive pensamentos impuros - tenho-os até hoje em situações assim, em todas as situações, acho que fruto de ter-me tornado esse pseudofruto pecaminoso que é o morango. Ela sorriu. E me deu um beijo. E foi cuidar de não me lembro o quê que estava fritando. Eu sentei numa das cadeiras da cozinha, ainda de sutiã e calçinha, e fiquei observando o que fazia. Cada gesto, cada olhar, cada musculozinho que compunha aquele corpo que era só meu, aquele corpo que abrigava uma alma que era só minha. Como a minha era dela. E cada vez que ela sorria um raio de sol entrava pela janela. E eu me sentia a mulher mais feliz do mundo.

Pedi-a em casamento. Não sou boa com essas coisas, sou desajeitada, sou muito poética e pouco clara, sou ridiculamente gaga. Mas ela entendeu. E sorriu. E antes que ela pudesse responder, fui até a gaveta do criado-mudo e lhe trouxe o anel. Fiz como minha mãe ensinou (meu irmão) que deveria ser feito: ajoelhei e falei, "Minha Maria, quer casar comigo?".

Ficamos mais sete anos juntas. Aí um dia, na sessão de cosméticos de uma loja de departamentos, ela estava experimentando um novo creme de morango quando conheceu outra garota. Voltou pra casa diferente. Ficou cantarolando alegremente no banho. À noite, na cama, disse que estava com dor de cabeça.

Quando acordei na manhã seguinte estava sozinha. Minha Maria se fora, desta vez para sempre. Senti-me de novo a bola de sorvete de morango descuidadamente caída ao chão, amalgamando-se a uma terra árida e dura.

Mas sacudi a poeira, afinal. Minha mãe dizia que o tempo minora tudo, e com a idade acho mesmo que a gente aprende a levantar e sacudir a poeira. A criar raízes num chão que é nosso, e não de ninguém mais. Levantei e sacudi a poeira. E joguei fora os cremes de morango que ainda restavam na casa.

Até hoje consigo sentir cheiro de creme de morango a quilômetros de distância. Mas nada de choradeira ou depressão. Não. Tenho boas lembranças. Foram três anos com minha Tereza, e mais três com mais sete anos com minha Maria. E agora era eu que não amava ninguém. Eu era o João, mas não era um Zé-ninguém. Era um morango, afinal e finalmente.

Rápidos e intensos, dizia-me uma amiga sobre os relacionamentos gays. Até que concordo com ela. Mais sobre a parte do intensos, na verdade. (E essa amiga também já está casada há já-perdi-a-conta-de-quantos anos).

Morangos apodrecem rápido. Mas se a gente souber escolher, souber preparar, souber saborear enquanto tem chance, acho que os morangos viram essência sob a pele, viram desejo na ponta dos dedos, viram intensidade no brilho dos olhos e viram gostinho de amor na ponta língua.

Morangos, morangos, morangos.

em apr.27th.2008

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