17.10.07

Ícaro terreno

Mayara morava, desde os 6 anos, no porão da casa de seu padrasto. O pai morrera antes dela nascer, e a mãe, sozinha com uma filha recém nascida, casara-se logo de novo. Mas não soubera escolher bem.
Lord Crapp era avarento e rabugento, só sabia reclamar, não pedia desculpas, por favor, nem agradecia, nem nada. Nos corredores da casa onde moravam, com 8 quartos e 3 empregados, os cochixos sobre a avareza do Lord só cessavam quando o mesmo abria a porta da biblioteca, gritava algumas ordens e voltava a fechá-la.
Não saía muito da biblioteca. A bem da verdade, só o fazia para tomar banho e deitar-se. Tomava o desjejum na biblioteca. Almoçava na biblioteca. Jantava na biblioteca. O quarto era enorme, quase uma Alexandria num cômodo de estantes em mogno. O pó tinha que ser tirado de madugada, pois Lord Crapp não admitia ser interrompido durante o dia em suas leituras
Quando a mae de Mayara morreu, a menina tinha apenas 6 anos. Alegre e cheia de saúde, vivia correndo pela casa. Ela já sabia, desde pequena, que a biblioteca era lugar proibido. Uma tarde, porém, Mayara brincava de esconde-esconde com alguns amigos imaginários e, escondida dentro do armário do escritório, viu quando o criado entrou sorrateiro
Mayara, que além de tudo era muito muito esperta, ficou bem quietinha e assistiu o homem bater com o nó dos dedos nas paredes do escritório. Ela não entendeu o que ele estava fazendo, até que atrás de uma pintura antiga que ele tirou da parede, ela viu uma caixa. Com certeza ele estivera procurando a caixa. A caixa tinha uma fechadura estranha, que ele ficou girando pra um lado e para o outro, até que ela se abriu e de lá a pequena Mayara viu o criado tirar um saco cheio de jóias. Depois disso, ele rapidamente fechou a caixa, recolocou o quadro na posição, e saiu tao silenciosamente quanto entrara.
Mayara logo deduziu o que acontecera, correu para avisar o padastro. Sem bater, abriu a porta da biblioteca gritando, 'mi lord, mi lord! o criado acaba de roubar-lhe as jóias de uma caixa no escritório, aquela que fica atrás do quadro de seu pai!'
O padrasto, furioso, pareceu não ouvir a denúncia da menina e, puxando-a pela orelha, arrastou-a até o porão, trancafiando-a ali. Mayara não entendeu o que acontecia, afinal, não devia ela ter-lhe avisado? Mesmo sem entender, conformou-se ao castigo e acabou adormecendo.
Quando voltou a acordar, encontrou uma pilha de roupas jogada a seu lado. Continuou sem entender. Não ousaria reclamar do castigo, jamais, e se tivesse que ficar mais tempo trancafiada por ser insolente? Assim, ela chamou pelos amigos imaginários, que chegaram ao porão por um túnel secreto, e ali brincou com eles até que a ama apareceu. Atrás dela, o mordomo trazia um baú; atrás dele, o criado ladrão, com a mao decepada embrulhada numa faixa improvisada, trazia o estojo que costumava ficar em cima da penteadeira de Mayara. Ela continuava sem entender. Pra que trazer aquelas coisas para o porão? Seria tão longo assim o castigo?
Ela não queria ficar muito tempo ali, gostava de correr ao sol, subir nas árvores, sentir o cheiro das flores desabrochando na primavera e da terra molhada de chuva e de neve no inverno! O porão era escuro, abafado, úmido, fedido.. e ela nem poderia ver os passarinhos dali, pois não havia janelas!
A criada mandou os rapazes embora e sentou a menina numa banqueta, desarrumou-lhe os cabelos, vestiu-a para dormir e mandou que se deitasse. Daí em diante, Mayara nunca mais viu a luz do sol.
Quando seus amigos imaginários não voltaram mais para brincar com ela, começou a sentir-se só. Aprendera a ler muito cedo, por causa da obcessão do padastro, e então pediu à criada que lhe trouxesse livros, um de cada vez. Pega-los-ia à noite, quando fosse limpar a biblioteca, e os devolveria na noite seguinte. A princípio, a criada ficou com medo e não aceitou o pedido. Mas depois, pensando em sua própria filha que brincava alegre com as crianças da redondeza, pensando em sua falecida ama que casara-se com o Lord apenas para proteger sua filha.. cedeu.
E assim Mayara viveu por 10 anos. Sabia quando era noite ou dia por causa da hora que a criada aparecia. Vinha cedo, quando acabava a faxina, entregava-lhe o livro e voltava com o almoço. À noite, trazia-lhe a janta e pão para a manhã seguinte - Mayara não dormia mais depois que recebia seus livros.
Até que um dia a criada não veio. Mayara achou que acordara cedo demais, tentou voltar a dormir e não conseguiu. Recomeçou a ler o livro que lera no dia anterior, e nada da criada. Achou que não tinha dormido nada, afinal. Não fazia idéia de que horas eram, estava com fome como se já fosse de manhã, era estranho. Não sabia dizer quanto tempo se passara até que a criada finalmente apareceu.
- Mi Lady! Mi Lord está morto!
Mayara espantou-se. Morto? Mas como?
- Foi assassinado!
Mas assassinado por quem, meu deus? Não que o padrastro fosse a pessoa mais amável do mundo, mas um homem que passa o dia trancado na biblioteca, como há de fazer inimigos?
A criada não sabia explicar. Olhou para a menina com os olhos cheios de lágrimas de felicidade e disse que agora ela era dona da fortuna e da própria liberdade. Que aproveitasse pois, estava um dia lindo de verão na rua.
Verão! Mayara não sabia o que era sol, árvores, pássaros, desde.. desde quase sempre! Abraçou a criada e saiu correndo escadas acima, atravessou a casa correndo como se ainda tivesse 6 anos, foi direto para o quintal.
Ah, mas que lindo! flores, flores, flores! As árvores frondosas com as copas verdes, verdes! O céu azul como ela nunca lembrava de ter visto! E o cheiro, da grama molhada do orvalho, das flores, da água do jardineiro!
Olhou o sol e imaginou, pelo que lera, que seriam por volta de 9 da manhã. Tinha muito tempo ainda para aproveitar o sol e a paisagem, lera que no verão o sol nasce às 5 da manhã e se põe só às 10 da noite.
Mas o que é bom dura pouco, e para azar de Mayara, uma onde de calor chegava à região naquela manhã. Mayara não se importou que estava com muito calor, imagine, 10 anos sem estar no sol, é claro que o corpo não estava acostumado. Ao meio dia a criada veio chamá-la para que entrasse, para que se protegesse, acabaria passando mal, estava mais quente que o normal, não era só ela, todos na casa sentiam. Mas Mayara nao lhe deu ouvidos, continuou correndo e brincando.
A certa altura, a criada não quis mais arriscar a própria vida para salvar a menina, afinal, tinha sua prórpia filha pra cuidar! Chamou-a mais uma vez sem ser ouvida e entrou chorando, chamou a menina e foram para um quarto muito úmido da casa, onde poderiam se proteger das altas temperaturas.
A criada nem viu quando, logo em seguida, Mayara reeencontrou seus amigos imaginários. Perguntou-lhes onde haviam estado nos últimos anos, eles disseram que foram para a escola, viajaram, fizeram novos amigos. Mayara ria e ria. O mundo cintilava à luz do sol! Eram 2 da tarde e o excesso de calor já lhe fazia delirar.
Quando, três dias depois, o sol parou de tranformar a região num inferno na terra, a criada encontrou Mayara deitada sob uma árvore, no mesmo vestido rosa com verde-claro que usava na ultima vez em que a vira. Já de longe, pressentiu o que acontecera, mas era presciso checar. Os lábios de Mayara estavam roxo claro, olhos fechados, um sorriso sinceramente feliz no rosto, uma flor branca entre os dedos e a outra mao como se segurasse uma mao invisível..

Oct.17th.2007

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