19.10.06

C'est l'amour

O mais interessante sobre o dia dos namorados é o dia seguinte. Dizem os jornais: "vendas crescem 20% em junho", "Celulares foram os preferidos pelos casais", e assim por diante. Todo ano as mesmas matérias, os mesmo índices, as mesmas fontes, as mesmas pautas. (Talvez, então, seja o mais desinteressante sobre o dia dos namorados o dia seguinte.) Mas não falemos do amanhã, porque isso é uma crônica sobre o hoje, sobre o Dia dos Namorados.
Entre sexo, paixão, sentimentos, jantares românticos, presentes, comércio e as cervejas dos sem-namorados, fiquemos com todos. Ficamos com Antônio e Lena - Madalena, para o leitor que não é íntimo. Madalena é classe média e não acredita em relacionamentos. Antônio trabalha 14 horas por dia, gosta dos filmes de Godard e cerveja sexta-feira à noite é religião. E eis que nesse ano o dia dos namorados era uma sexta-feira.
Encontraremos Antônio de sapato lustrado e calça social, de copo na mão e sorriso despreocupado. Ele não tem namorada e espera sua vez para jogar sinuca com o amigo já meio alegre três cervejas depois.
Encontraremos Madalena virando a esquina da Rua Augusta com a Avenida Paulista, acendendo um Marlboro vermelho e pensando sobre pílulas abortivas para casos de gravidez psicológica. Mas ela não está gravida, é apenas o efeito da sexta-feira fim de tarde que amorna o vento já meio gelado de junho. Madalena encontra uma amiga ao acaso e elas resolvem parar no bar mais próximo para uma cerveja.
Ora, vamos, é dia dos namorados e é claro que Madalena e Antônio tropeçarão no mesmo lugar esfumaçado e barulhento. E, por ser dia dos namorados, pulemos a parte de história em que Antônio e Madalena discutem sobre quem deve usar a mesa de sinuca primeiro. Pulemos a parte dos palavrões, da garotinha mimada e do engravatado pedante. Vamos direto para a parte em que os dois, com seus amigos acessórios, decidem jogar juntos - e ignoremos o clichê da guerra dos sexos aqui implícita. (Só para não tornar a história desagradável, ignoremos também as cantadas esdrúxulas que o amigo passou na amiga e as duas derrotas dos sujeitos meio bêbados para as duas garotas com já duas cervejas na primeira meia hora de conta.) Vamos logo para o momento em que o dia dos namorados vem à tona na conversa e, numa brincadeira, Lena e Antônio decidem namorar.
O comércio, é claro, tem horário especial para os esquecidos de última hora, e nada melhor que trocar presentes para entrar no clima - já que ainda são oito horas e, por enquanto, fica impróprio chegar na parte do sexo. Lena escolhe uma gravata azul-escuro com três listras azul-bebê, enquanto discute com a amiga (que até chegarmos na parte do jantar romântico não pode ir pra casa) sobre o que seria do mundo se não fosse a brilhante invenção do cadarço de tênis. Antônio acaba com a terceira cigarreira que vê, por pura falta de paciência com o amigo, que tenta desesperada e embriagadamente fechar o zíper da calça.
Lena se faz de agradecida pela cigarreira - apesar de já ter 4 em casa. Antônio finge não ter outras três gravatas iguais no armário e diz que adora azul - apesar de odiar a cor, que sempre o faz lembrar de um traumático conto lido na adolescência.
São quase nove e é hora de disputar com outros 5 casais (de verdade) uma mesa num restaurante a uma quadra dali. Os amigos acessórios a essa altura já estão (ele) no caminho de volta pro bar e (ela) comprando um chocolate na banda de jornal na entrada do metrô. Digamos que Antônio e Lena dividiram um prato de spaguetti e deram o primeiro beijo - que havia, por acaso, sido esquecido.
Pra não dizer que não falamos de sentimentos, a primeira discussão de relacionamento do casal vem na hora de pagar a conta. Em um ímpeto machista, Lena não quer pagar nada; num caso de pura conveniência, Antônio vira feminista e que dividir o valor. O fim dessa parte da história na verdade pouco nos importa, pois já são dez e seis e as crianças já fora para a cama - coisa que, é claro, esperamos que nossos personagens não demorem a fazer.
Algumas pessoas diferenciam amor de paixão afirmando que esta última é baseada em tesão. Não temos intenção poética alguma aqui, mas é dia dos namorados e essa hipótese nos parece levar a um final feliz - afinal, redundante, é dia dos namorados. Se o carro de Antônio não estivesse no mecânico, nossa história poderia levar Lena ao não mobiliado e recém alugado apartamento de Antônio. Para azar dele, no entanto, nossa história nos leva ao tapete azul-bebê do quarto de Lena.
Desnecessário continuar a história. Mas, já que o leitor parece tão curioso, basta dizer que a história não continua. Depois do sexo - e do sexo, e de mais sete "e do sexo" -, Antônio reabotou a camisa e Lena ascendeu outro cigarro. E os dois nunca mais se falaram. Ainda curioso, o leitor há de perguntar o que essa história toda tem a ver com dia dos namorados. De fato, muito pouco - mas isso só significa que, pelos por uns oito minutos, o assunto "dia dos namorados" foi muito pouco lembrado.
Feliz dia dos namorados.
Jun.28th.2006

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