29.2.04

Das muitas coisas que você não explica

- É que eu preciso dizer que tenho um namorado, mas eu não posso mentir, entende?
Ela dissera aquilo com a maior naturalidade, mas sabendo que não parecia haver nexo em seu pedido. Lembrou do político grisalho de gel no cabelo. A questão é que ela precisava viajar ao nordeste para entrevistar o tal deputado (ou era um senador?), e era temporada, os hotéis estavam lotados - ela esquecera de reservar vaga -, então a opção era se hospedar na casa de um pen pal, amigo por correspondência.
Em plena era da internet, e-mail, e dias que você vê em míseros segundos, ela ainda se dava ao trabalho de comprar selos e envelopes coloridos, escrever em papéis de carta e passar em algumas das, agora raras, caixas de correio. Tem coisas nesse mundo que a gente não explica. De uma forma ou de outra, por sorte ou destino, ela agora ia pro mesmo buraco aonde o tal Sérgio morava.
- Somos amigos, eu confio nele, o conheço e tudo o mais. Só que ainda assim tenho que me resguardar, entende? Então eu tive essa idéia: digo pra ele que tenho um namorado, falo desse namorado algumas vezes por dia, e ele não vai tentar nada comigo. Mas eu não queria mentir pra ele, dizer que estou namorando sem estar, entende?
Ele tentou entender. Realmente, por mais que ela confiasse, ela só conhecia o tal do Sérgio por correspondência, e a situação era meio delicada. Com um sorriso, ele se lembrou de que era exatamente isso que a mãe dizia a sua irmã, quando ela vinha com idéias de viagens pelo país com hospedagem em casa de virtual friends. Por fim, aceitou.
- Mas o que exatamente eu tenho que fazer?
- Bom, eu estava pensando. Se nós vamos namorar eu preciso saber algumas coisas de você, e você de mim, só por precaução. Vai que ele me pergunta algo que namorados sabem e eu não sei? - ele meneou a cabeça, assentindo. - Além disso, a gente pode sair algumas vezes nessas duas semanas q ainda faltam pra viagem; pra eu ter lugares pra descrever, cenas, entende? - entendia. - E, bom... - ela pigarreou, estranhamente tímida - acho que, se você não se importar, é claro, a gente talvez devesse, hm, se beijar... - ela baixou os olhos, levantando-os rapidamente para encara-lo e voltando a baixa-los - pra dar mais realidade, entende?
Ela não saberia explicar porque aquele rubor súbito. Afinal, ela não era apaixonada por ele, aquela história do vereador (deputado?) era mesmo verdade, e o namoro era puramente conveniente. Ele, por sua vez, também não entendia o porque de seu nervosismo já que, também da sua parte, não havia paixão, e se submetia àquilo por amizade - afinal, por mais que fosse estranha e birutinha (como costumava dizer), a menina era bacana.
Nas duas semanas que se seguiram, ela tratou de gravar bem o cargo do vereador - e ela achando que era alguém importante, um senador, algo do gênero -, e pesquisar coisas a respeito do dito cujo, pro caso de uma necessidade. No primeiro dia após a conversa ele não ligou, pois não queria parecer interessado, mesmo porque não estava, e ela também não o fez porque não queria dar a impressão de o estar pressionado. Mas, no segundo dia, era sexta-feira, e as pessoas saem na sexta-feira; ela ligou.
- Você não acreditaria se eu dissesse que estava discando teu número quando o celular tocou, não é? - disse ele, sendo puramente sincero. - Como está?
- Bem, bem. E você?
- Tudo OK; melhor agora, que é final de semana, não é? - eles estavam protelando, essa era a verdade. Mas, aproveitando as exaltações de 'viva o final de semana' do outro lado da linha, ele introduziu o assunto - Então, que tal se a gente saísse?
- Boa idéia! Era exatamente por isso que eu tinha te ligado. O que você sugere?
Sem esquecer de seu propósito, ela fizera uma "lista de coisas que namorados devem saber", e passaram uma boa parte da noite nesse quis; de uma pergunta tola puxavam assunto, lembranças de infância e a noite se passou agradavelmente.
O dia seguinte, obviamente, era um sábado. E as pessoas também saem no sábado. Então foi a vez dela escolher o bar, e a vez dele escolher as perguntas. Apesar de amigos, eles não costumavam sair juntos com tanta freqüência, e provavelmente não acreditavam que isso valesse muito a pena.
Ela era uma menina muito alegre mas também muito avoada. Morena de olhos castanhos, era até meio magra demais, de estatura um pouco acima da média, desengonçada; apesar da aparência frágil, tinha personalidade e caráter marcantes, e era firme em suas opiniões. Tinha umas idéias arrojadas - o que até certo ponto era bom pra sua carreira de jornalista -, e um bocado de amigos que a ajudassem nas mais loucas empreitadas. Amigos, aliás, era um de seus vícios. Mesmo quando lhe faltava tempo, ela dava um jeito de arranjar mais um endereço, mais um e-mail, mas um uin.
Ele, que a conhecera na festa de um conhecido em comum, era mais reservado, mais calmo. Não era de falar muito, mas quando o fazia era pra dizer algo de útil, e até que era espirituoso - o que, na maioria das vezes, não é comum aos calados e caladas. Um metro e noventa de músculos pequenos mas definidos, um sorriso de dentes perfeitamente enfileirados e um cabelo cacheado que lhe caía até os ombros. Era um rapaz muito criativo, mas seu talento não era bem aproveitado na empresa de consultoria administrativa.
E, mesmo sendo uma quarta-feira, ele resolveu arriscar e ligar pra ela, precisava preencher as respostas das novas perguntas que imaginara. Ela também tinha mais algumas perguntas na lista, e almoçaram juntos. Ela não comia carne vermelha, ele não suportava alface; ela não tomava refrigerante, ele adorava suco de abacaxi; ela pagava em cash, ele marcava na conta. E ela tinha um piercing na língua, que ele só percebeu quando se despediram e - pela primeira vez - se beijaram. Foi iniciativa dela, fazia parte do acordo, entende, mas ele também não fez contra, entendia. Mas foi só um beijo, uma despedida comum entre namorados; mesmo de mentirinha, I guess, pensou ela.
Quando chegou sexta-feira ele teve churrasco com a turma da faculdade, e ela ficou de babá pra sobrinha. No sábado tinha jantar da família dela, e ele foi passar o fim de semana no campo, com uns amigos. Na terça ele ligou, ela estava atarefada acertando os últimos detalhes da viagem, mas marcaram de almoçar juntos no restaurante do aeroporto no dia seguinte, assim teriam algum tempo pra conversar - a departure estava prevista para as 14:00hs.
Meio enrolada entre guardar o tíquete do estacionamento e procurar alguma mesa, ela esbarrou numa menina de vestido ridiculamente rosa e cheio de babados. A topada fez a criança cair pra trás e desatar a chorar; a mãe apareceu logo em seguida, com cara de preocupação, pegando a pequena no colo e tratando o caso como um braço quebrado, perguntando ao marido se havia uma sala de emergência no aeroporto, apenas por garantia. Gente exagerada, pensou ela, que já guardara o papel azul-bebê na bolsa e agora fechava o zíper, sentando-se numa mesa - ele ainda não havia chegado. De um dos bolsos da calça ela puxou uma lista de, duas colunas, dos apontamentos principais: a da esquerda era sobre o vereador grisalho de gel no cabelo, informações pessoais, cargos importantes - nessa parte ela deu um sorriso sarcástico -, dados extra-oficiais sobre o Caso dos Jardins e coisa do gênero; a da direita era sobre ele, aniversário, família, bandas favoritas, hobbies, umas fotos que ela encontrara na internet e imprimira.
- Ei! Onde você achou essas coisas? Não vê que essas fotos queimaram? - a voz vinha de trás do seu ombro, num tom divertido. - Não sou nada fotogênico; vê que meu sorriso sai falso e eu não sei o que fazer com as mãos?
- É que na última hora me lembrei que namorados costumam andar com fotos um do outro na carteira. - ela lhe deu um beijo rápido, tão rápido que os lábios mal se encostaram. Era, então, a segunda vez que se beijavam, e ela tratou de logo voltar à conversa. - E o sorriso não está tão ruim, embora esteja mesmo meio falso.
Quase perdeu o vôo. Ele lembrou de perguntar se ela já tinha mencionado o namora ao Sérgio, e ela disse que sim, que ele parecia ter ficado bastante feliz. A conversa se desenrolou e quando se deu conta, faltavam quinze minutos pra partida e ela ainda tinha que ir ao balcão da empresa cumprir as mil e uma burocracias. Pra melhorar a situação, ela não achava a passagem, maldita passagem!, blasfemava de si pra si. Por fim, menos pior, a encontrou no meio do bloco de anotações, e conseguiu embarcar.
Fora o calor escaldante, tudo correu como devia. Sérgio era muito mais gentil pessoalmente, e ela ficou feliz de conhece-lo enfim, após quase ano de correspondências trocadas. Percebendo um jeito diferente em seu amigo, ela (como sempre muito direta e até indiscreta) questionou-o a respeito da sua opção sexual - por incrível que pareça nunca haviam tocado no assunto, a não ser uma breve menção da parte dela sobre o namoro recente -, ao que ele assumiu, sem nenhuma cerimônia, ser homossexual. Tranqüilizador, ela pensou, e quase se arrependeu de ter inventado aquele namoro.
De volta, saindo do salão de desembarque, entre procurar na bolsa o maldito papel azul do estacionamento e empurrar o carrinho com a bagagem, ela levantou os olhos - não queria nenhuma criança rosa e embabadada sendo atropelada desta vez -, e eis que inesperadamente encontrou com ele. De súbito, parou. Então uma felicidade lhe invadiu e, abrindo um sorriso, foi ao seu encontro.
Se ela não sabia o que ele fazia ali, que dizer dele, que simplesmente saíra do serviço e lembrara que ela devia estar chegando. Ao abraço apertado, seguiram-se uns segundos, durante os quais eles apenas se olharam nos olhos, matando as saudades. Ela quebrou o silêncio.
- Nossa! - exclamou. Ela costumava usar interjeições quando não sabia o que dizer. - O que você... quero dizer, que bom que você veio!
- É, eu lembrei que você devia estar chegando hoje, mais ou menos por essas horas e resolvi dar uma checada. Dei sorte, não é? - ele falou, num tom alegre, dando uma piscada de olho. - Seu carro está no estacionamento, não está?
- Como você sabe?
- Lembro que você saiu correndo pra pegar as bagagens no dia da partida. - ela riu alto, com gosto, os olhinhos brilhando. - o que foi?
- Eu sou absurdamente enrolada! Não sei como consigo viver assim. Mas, sim, estou com o carro aí. E você?
- Vim de táxi, na esperança de ganhar uma carona. - ele piscou de novo, e ela sorriu.
Ele tomou o carrinho das malas e foram caminhando; a alguns metros do estacionamento ela voltou a remexer na bolsa atrás do papel azul e, agora, da chave do carro também.
- Como eu consigo ser tão enrolada? - ela exclamou, colocando a chave na ignição e dando a partida.
- Acreditaria se eu dissesse que senti falta disso?
- Arrancar o carro? - perguntou ela, com estranhamento.
- Não. Desse seu jeitinho meio atrapalhado de fazer as coisas. - ele falou devagar, os olhos com um brilho estranho, ternos.
- É. Eu também senti sua falta. Quase te liguei, mas não quis fazer interurbano da casa do Sérgio, entende? É bom poder ter você de novo. - essa última frase saiu meio sem querer, um ato falho, algo que ela realmente pensava, mas que não tinha a intenção de manifestar. Tentou ratificar - Digo, é bom estar de volta; minha cidade, meu carro, minha rotina, entende? Por mais que eu não goste de rotina. - e mudou de assunto.
Enquanto conversavam sobre futilidades, comentando sobre o caso do vereador e o calor insuportável do nordeste, ela pensava sobre essa repentina boa sensação por estar de volta; não estar de volta a cidade, à rotina, como dissera, mas por estar de volta a ele. Tinha mesmo sentido sua falta, e falado nele um bocado de vezes - mesmo sabendo que não corria mais risco. E procurou manter a conversa longe do assunto trato, percebendo, entre assustada e feliz, que não queria que o namoro acabasse.
- Ai, caramba! Esqueci que tinha de te levar em casa e tomei o rumo do meu apartamento! - irrompeu ela, dando um tapa na própria testa e se xingando mentalmente pela estupidez do esquecimento - Bom, mas tenho uma idéia. Janta comigo?
- Ora, mas não pela carona! Pode me deixar num ponto de táxi que eu volto pra casa sem problemas, eu não quero te dar transtorno!
- De jeito nenhum. Se você não quer jantar, eu faço questão de te levar de pra casa; tem um retorno logo ali adiante.
- Não, não. Eu aceito o jantar. Só pensei que você estivesse cansada da viagem e não quis te dar trabalho.
- Jantamos, então? - ela o encarou, parada em frente à entrada do prédio, esperando o portão abrir.
Instintivamente ela pôs um disco que sabia que ele gostava, mandou pedir um dos seus pratos preferidos e abriu uma garrafa de vinho, enquanto se sentavam no sofá para conversar e esperar o jantar. Houve então um daqueles momentos de silêncio que entremeiam as conversas enquanto nenhum assunto vem à pauta. E ela estremeceu quando ele, perguntou, afinal, sobre o tal Sérgio.
- Ah, ele é muito mais simpático pessoalmente.
- É bonito?
- Não muito.
- Mas é?
- Não, eu não achei.
- E ele tentou alguma coisa com você? - havia uma ponta de ansiedade em sua voz.
- Não, não. - ela faz um pausa. - Na verdade... bem, ele é gay.
- Sério? - ele gargalhou feliz, jogando a cabeça pra trás. - E você não sabia disso? - ela balançou a cabeça em negação e ele riu de novo.
- Qual é a graça?
- Então essa história toda de namoro foi em vão?
- Bom... - ela começou, sem saber como continuar, mas não foi necessário, porque ele a interrompeu.
- Digo, em vão não porque fez a gente se conhecer melhor e... - ele fez uma pausa, tomou um gole de vinho.
- E...? - era mordeu os lábios, na expectativa.
- Ah, nada, deixa pra lá; besteira, você não ia acreditar.
- Fala! - sua voz saiu meio aguda, suplicante. De repente, ela teve medo; teve certeza de que a frase seguinte seria o fim do namoro de mentirinha. - Eu não vou rir, juro!
- Bom. Eu sei que a gente só se conheceu mesmo naquelas duas semanas antes de você viajar, mas ainda assim eu te achei uma menina muito legal, gostei do teu jeito estranho de ser... digo, no bom sentido, eu acho legal isso e... - ela riu. Não do que ele dizia, mas de alívio por ele não estar falando nada em terminar o namoro. - Viu! Eu sabia que você ia rir! - ele exclamou, sentido.
- Não, desculpa! Não estou rindo de você ou do que você está falando. Eu fico feliz que você me ache legal, porque eu também te acho um cara muito bacana. Muito mesmo. - ele sorriu, meio encabulado. - Eu estou rindo porque, hm... bom, porque eu achei que você ia terminar o namoro... - agora ela falava devagar, temendo a resposta.
- Você quer terminar o namoro?
- Não. Quer dizer, o namoro era de mentira, mas...
- É... mas tudo bem se você quiser acabar.
- Você quer?
Houve um minuto de silêncio, durante o qual eles se encararam.
- Não. - ele falou de súbito. - Eu sei que parece ridículo dizer isso, já que a gente só se conheceu efetivamente há pouco menos de 3 semanas, mas eu to apaixonado por você. - as palavras saíram tão rápido e de maneira tão verdadeiramente emotiva que ela tonteou. - Mas tudo bem se você quiser terminar, eu...
- Não quero. - ela o interrompeu. - Era justamente o que eu não queria. Eu também me apaixonei por você nesse pouco tempo e...
Faltaram palavras. A ambos. Mas, felizmente, eles podiam usar as bocas - de uma outra forma - para dizer o que sentiam. E o jantar acabou esfriando...

29/Fev/2004